Cacá Carvalho, 64, prefere o risco. Foi assim desde sempre. Nascido em Belém do Pará, ele só trocou o teatro profissional uma única vez na vida por outra profissão. Foi ser artesão em Embu das Artes (SP), depois de retornar de uma viagem à Alemanha, onde fazia estágio com Arianne Mnouchkine. Um pouco antes dessa “fuga”, que durou dois anos, e da experiência no exterior, com o grupo teatral Experiência, Cacá havia descido o Amazonas, numa corveta da Marinha de Guerra, de Belém a Manaus, apresentando-se para os ribeirinhos. Voltou aos palcos em 1982 e de lá nunca mais saiu. Quatro anos depois, seria consagrado como um dos maiores intérpretes do país, pela crítica e pelo público, por sua atuação em Meu Tio, o Iauaretê, dirigido por Roberto Lage. Este espetáculo, inspirado em contos de Guimarães Rosa, acabou sendo também um divisor de águas em sua vida, ao levá-lo ao Centro per la Sperimentazioni e la Ricerca Teatrale, Pontedera, Itália (hoje Teatro Della Toscana), com o qual colabora – como ator, pedagogo e diretor – até hoje. “Ali achei um outro mestre, como achei tantos outros, e aí eu poderia citar, ainda em Belém do Pará, o Geraldo Sales. Como mestre-autor, o Guimarães Rosa. E o Antunes Filho, que foi um mestre fundamental no meu percurso”, diz. Em passagem por Salvador, no início de abril, Cacá apresentou seu novo espetáculo, o monólogo O homem do subsolo, promoveu uma oficina gratuita e se permitiu aquilo que considera fundamental para qualquer ator: o aprendizado com as pessoas. Famoso na TV pela interpretação de um único papel, o Jamanta da novela Torre de Babel, ele fala sobre sua relação com a televisão, o cinema, as redes sociais e os palcos. ”Sou de uma geração que acreditava que o teatro podia mudar o mundo”.
Duas experiências interessantes, e pessoais, marcam sua trajetória. Gostaria que nos falasse sobre como elas influenciaram em sua carreira como ator e em sua formação como ser humano. A primeira foi percorrer o rio Amazonas com peças de teatro, apresentando-se para os ribeirinhos. A segunda, fora dos palcos, o artesanato em Embu das Artes.
São duas experiências que na minha vida tornaram-se muito significativas. A primeira, na flor da minha juventude, o grupo de teatro do qual eu fazia parte – Grupo Experiência – participou de um projeto belíssimo, chamado Barca da Cultura da Amazônia, que saiu com um espetáculo infantil dentro de um corveta de guerra da Marinha, parando de cidade em cidade – de Belém até Manaus – na beira do rio. E depois que chegou a Manaus, voltou fazendo apresentações para o outro lado do rio, até chegar a Belém. É uma experiência significativa porque nessa idade conhecer o interno, naquela época, num período de ditadura, foi marcante. Talvez na época eu não tivesse consciência, noção do valor cultural daquilo, mas hoje, olhando, eu sinto que ali foi uma fonte de aprendizado muito forte. A segunda foi quando eu deixei um trabalho, quando eu deixei o espetáculo Macunaíma, depois de ter feito mais de centenas de apresentações pelo mundo afora. Deixei porque precisava, eu era muito jovem, tinha 27 anos. E fazer Macunaíma, por três anos (eu tinha 24 anos quando estreei), com todo aquele sucesso, todos aqueles prêmios, viagens pelo mundo inteiro, ora em Nova Iorque, ora em Manaus, ora no Rio, ora em Londres, e toda aquela circulação… quero dizer, a tua cabeça… E todo mundo dizendo que você é isso, aquilo, maravilhas de tudo, você precisa se fechar um pouco. Então eu deixei e optei por fazer artesanato na Cidade do Embu, numa tradicional feira de artesanato, e expunha o artesanato que eu fazia aos domingos. Aquilo foi um modo de eu me reencontrar, abafar um pouco, tirar aquela coisa que vai nascendo quando você começa a escutar demais que você é maravilhoso, fundamental e esses adjetivos que te colocam e que, se você não sabe ouvi-los, eles podem fazer mal.
Os anos 70, ainda ditadura, foram os da geração do desbunde. Mas também os da geração que foi às ruas pedir o retorno da democracia. Como você vivenciou essa fase?
Eu acho que era, sim, muito a geração do desbunde, e muito a geração de pedir democracia, mas eu não acho que na época eu tinha essa consciência que se atribui a toda aquela juventude daquela época, que ia à rua. Não tinha. Eu não era politicamente ativo, sabendo de tudo. Havia um resguardar-se dentro do teatro para ali, dentro do teatro que se fazia, encontrarmos modos de fazer os textos que queríamos e driblar a censura para poder fazer o nosso trabalho. Acho que hoje em dia, no atual momento, o antagonista político do teatro é declarado, mas ele ainda não se manifesta como na ditadura daquela época, ele se manifesta de outro modo de ditadura, mas nós ainda, enquanto geração, enquanto movimento de teatro, ainda não o enfrentamos no palco, com discursos, com ações fundamentais. É um outro momento, é um outro momento da vida, é um outro momento de mundo, é um outro momento geracional, não dá para cobrar o mesmo comportamento.
Cacá, em sua opinião, qual a relação entre O homem do subsolo, sua peça mais recente, e o lugar de fala que está no centro das discussões contemporâneas? Penso também nas questões da subalternidade e da voz dos subalternos.
Eu acho que homem do subsolo é a voz de um homem. De um homem que ganhou, construiu, conquistou a consciência. Nos dias de hoje, os subalternos, eles se juntam, falam, gritam, se mobilizam. E é importante essa mobilização. O homem do subsolo, do Dostoiévski, é um homem isolado, eu acho que nos dias de hoje a voz dos subalternos, a voz dos que não concordam com o sistema que está claro que está corroído, que está por pouco para cair, esse sistema que nós vivemos social e político, corroído, eles têm a voz dessas pessoas de subsolo, que têm consciência da realidade, precisam se juntar e criar um pouco de discordância, que é fundamental. Acho que é por aí.
Fazer teatro sempre foi visto como resistência. Em que medida essa resistência vem se tornando ainda mais simbólica no país? Qual é, em sua opinião, o papel do ator e do teatro hoje?
Eu sou de uma geração que começou a fazer teatro acreditando que o teatro podia mudar o mundo, sabe? Hoje eu acho que são outros tempos. Acho que o teatro precisa mudar, quem faz teatro, em primeiro lugar, os discursos que um ator escolhe, as pessoas com as quais ele trabalha, são pessoas que são fundamentais para que ele se altere, para que ele se torne um homem ativo, consciente. E aí, sim, ele pode manter uma relação direta com o outro – no caso o espectador – e através desse encontro entre ele e o espectador possa nascer algo concreto que possa ser a possibilidade – e isso é importante – de talvez alguém se alterar. É difícil porque somos hoje devoradíssimos por tanta informação em tantos meios que nos consomem e nos devoram que, às vezes, aquele pensamento que nasce, aquela consciência não tenha tempo para ser regada, porque a vida é muito rápida. A vida é muito rasa, no geral.
O teatro é a arte viva do coletivo, mesmo em um monólogo. Nesse sentido, ele simbolizaria também a comunidade viva na arte. Concorda? Mas os coletivos hoje tornaram-se tão “líquidos” quanto as relações nas redes sociais. Como vê esse novo sentido emprestado às relações voláteis e virtuais?
Eu gostaria, eu sonho, o que eu mais quero, porém o tempo não me dê essa oportunidade mais, é trabalhar e ter um grupo, desenvolver um tempo, um trabalho sólido que se vai construindo aos poucos, uma linguagem com pessoas, um trabalho, mesmo um monólogo, é coletivo. E eu acredito no coletivo. Os trabalhos que eu faço são vários monólogos que eu tenho no meu percurso, eles são sempre com o mesmo diretor, o mesmo dramaturgo, cenógrafo, figurinista. Essa equipe está sempre comigo, são pessoas com as quais eu estou sempre junto discutindo. Os grupos para se manterem e perdurarem e não serem tão breves, eles têm que ter um líder, eles têm que ter um mestre, uma pessoa que diz, mesmo sem saber exatamente qual seja, diz qual é o norte, e ali todos apostam. E ali todos mergulham.
Você é um ator essencialmente dos palcos, mas teve passagem marcante na TV. Gostaria que nos falasse sobre a parceria com a Fondazione Pontedera e como ela tem ajudado a viabilizar o teatro no Brasil.
O palco é a minha vida. Mas já tive experiências que me fizeram aprender muito e que me dão prazer ainda hoje, muito, na televisão, por exemplo, uma arte coletiva onde eu entrei e nas passagens que eu tive eu cheguei deixando claro que eu… da minha ignorância daquela linguagem, e eu fui acolhido… e todos foram muito parceiros, os colaboradores, da direção, do autor, da técnica, todos foram muito generosos para comigo no sentido de me orientar para entender que ali é um outro tipo de expressão, de tamanho de expressão, de forma, de apresentar, de ritmo, de produção… é todo um outro alfabeto, uma linguagem que eu não sei falar direito. E se houve esse sucesso – e ele houve – e o público não esquece até hoje, eu devo a isso tudo. Ao público que enxergou e a toda essa equipe, onde eu era um elemento que ia para a direita, para a esquerda, como quem vai sendo guiado numa neblina, e isso foi muito bonito e uma arte coletiva linda. Um trabalho coletivo lindo. Já com a Fondazione Pontedera, que hoje em dia é Teatro Della Toscana, isso é uma outra coisa, é a formação. Quando eu comecei como um artista, lá quase 30 anos atrás. Era um artista, queria ser um ator. Hoje talvez a minha formação junto com Roberto Bacci, que é meu mestre, orientador, parceiro já há quase 30 anos, eu não sei se é mais esse ator, esse artista que se quer formar, que ele queira que eu me torne. Mas eu acho que nossas conversas hoje, os nossos interesses artísticos, os nossos objetivos são que um e outro tornem-se homens melhores. Tornem-se homens que são especiais. Ter a noção clara de que nós viemos – nós, falo todos nós – ao mundo porque somos especiais, e cuidar do trabalho que fazemos de forma especial, nos melhorarmos como seres humanos. Pontedera, para mim, é uma referência. Pontedera é, para mim, uma mudança de caminho, ali eu achei um outro mestre, como achei tantos outros, e aí eu poderia citar em Belém Geraldo Sales, como mestre autor; Guimarães Rosa, quando trabalhei sobre um texto dele; Antunes Filho, mestre fundamental no meu percurso.
Falamos sobre TV, e o inesquecível Jamanta (personagem de Torre de Babel, 1998, que retornou em Belíssima, de 2005). Como é a sua relação com este veículo e com a dramaturgia televisiva?
Voltaria à TV, sim. Em circunstância qual… que eu conciliasse, que eu conseguisse conciliar todos os planos que por dar sempre atenção ao teatro, claro que eu tenho uma série de coisas programadas já para… acreditando que eu vá durar mais tempo, para mais tempo então eu não gostaria de abrir mão disso e encaixar com a… A televisão te requer um tempo, uma dedicação muito grande, então precisa ver se é possível. Eu agradeço muito a oportunidade de ter participado, eu espero um dia fazer novamente, sim. Aprende-se muito, sabe? É uma outra… não só linguagem, sabe, mas é uma outra relação de trabalho, um outro comportamento, não pode falar umas coisas porque não é daquele veículo, não atingirá aquele público, requer uma estratégia comportamental, de linguagem de… é interessante. Eu voltaria, mas não sei se é interesse para eles também, sabe? Precisa ver isso. Eu nunca parei para pensar, nunca parei para programar, “vou fazer tal coisa”. Eu vou fazendo, vai aparecendo, nesse momento aparece teatro, aparece encontro, aparece encontrar amigos, aparece reencontrar amigos, eu acabei de viver uma experiência incrível, por exemplo, agora em Belo Horizonte, onde eu fiz a oficina de atores junto com o Grupo Galpão… agora quando fiz o encontro junto com atores de Salvador, a temporada no Teatro Castro Alves, e a experiência rara na vida de qualquer artista de fazer um espetáculo com um Dostoiévski às 11h da manhã, num domingo, dentro de um palco nobre como o TCA, sabe? Esse tipo de experiência te invade e te devora e vira uma nódoa maravilhosa na tua vida, que você nem pensa em fazer outra coisa a não ser isso. É maravilhoso o que o teatro me dá… É maravilhoso o que os amigos que eu faço no teatro me dão. As cidades por onde eu passo eu viro a cidade, eu viro os amigos da cidade e aí eu vou ficando cheio de impressão digital do lugar, das pessoas, e é maravilhoso.
O cinema também está entre seus trabalhos, com um peso especial. É um exercício que se diferencia bastante do teatro, e mesmo da televisão, por envolver um processo mais lento de produção. Como você lida com o tempo em sua arte?
É mais difícil ainda de encontrar espaço no cinema, tempo no cinema para fazer, mas eu adoraria. Eu morrerei analfabeto de tantas linguagens artísticas, o cinema é uma delas. Eu fiz pouco. É muito lindo, é muito… é muito próximo, é muito planejadinho. Por não ser industrial e por não ser… sabe… é tão… resulta meio que todos estão fazendo uma coisa muito delicada que pode quebrar a todo momento, mas eu não sei. Eu já tenho 64 anos … não sei… porque também precisa tempo para programar. Talvez eu não me exponha e não me ofereça tanto para fazer, não sei… Fico muito trancado no teatro.
Uma questão sempre controversa são as leis de incentivo e editais. Qual, em sua opinião, é o caminho mais produtivo e mais ético?
Ah, é complicado. E é fundamental. É complicado e fundamental. Quanto mais leis de incentivo, melhor. Isso é uma coisa. Porém, quanto mais leis de incentivo, não quer dizer nada. Porque como são tantas as – falo agora do teatro, hein? –, são tantos os teatros, são tantos pensamentos e formas de fazer teatro que às vezes os editais são voltados para atender a um determinado tipo de teatro e não outro. Mas quando falo isso não sou contra o edital que tem. Mas é que falta e sempre faltará porque… não atende a produção. Não atende à necessidade das pessoas, de todos os artistas se manifestarem. E não dá para fazer sem apoio porque é tudo muito caro, sabe? Então precisa mais. Eu não saberia falar o caminho mais produtivo e mais ético. É tentar criar o máximo. Acho que precisa começar destinando mais dinheiro para a cultura, isso sim. E a partir daí ver como se melhora para atender a todas as demandas da quantidade de artistas que querem produzir tão distintas expressões, e todos precisam de apoio. Todos. Não é fácil para ninguém. Não acredito que seja mais fácil para A ou para B. Cada um tem seu grau de dificuldade. Porém tem aqueles que precisam mais. Tem aqueles que estão… os assim chamados – eu vou usar um termo que não suporto – “fora do eixo Rio-São Paulo” … Ali precisa uma ação. Ali, quando vai para cima, quando vai para lá de onde eu sou, de Belém, que vai… que vai escapando… que tem Sergipe, que tem Salvador, que tem Fortaleza, que tem o interior dos lugares, que tem Amazonas, que tem… esse interior tem… são gerações e gerações que nós podemos estar perdendo… olha que terror!
Em Nu com minha música, Caetano fala sobre a visão de “uma trilha clara para o país, apesar da dor”. Você acha possível ver essa trilha? Como o teatro margeia a política e como a política margeia o teatro?
É nisso que eu acredito. Eu acredito que eu não verei, mas que haverá uma geração que usará os prazeres de ver sempre beleza… citando a frase do Dostoiévski, que me move para fazer esse trabalho que estou fazendo agora sobre o subsolo: “É a beleza, é ela que salvará o mundo”. E nós estamos acostumados a ver e nos alimentar do feio que nos é mostrado a toda hora. O feio, o horror, mas é a beleza, é o amanhecer todo dia lindo, é a criança que nasce… Eu acho que é só ela que salvará o mundo. Então eu acredito que haverá outra geração que manterá contato com mais beleza. Que manterá contato com coisas que alimentem e formem um homem melhor, uma alma alimentada. É nisso que eu acredito. E eu espero que eles sejam tudo aquilo que eu sonhei e muito que eu não consegui fazer.