por Sydney Violet-Bristow
Me lembro de ser criança e sempre me perguntavam: “O que você quer ser quando crescer?” Minha resposta não mudou até hoje – tudo o que eu quero ser é EU MESMA. Eu sei que “ser você mesmo” parece um lema clichê, mais adequado para uma caneca ou uma camiseta do que um objetivo de vida. Mas foi o que me deu motivos para continuar a viver, motivos para lutar. Quem eu era e quem queria ser, sempre foram duas coisas diferentes.
Por todo o ensino médio fui diagnosticada com disforia de gênero, eu era do gênero masculino no papel, e esperavam que eu atuasse no papel de homem. Não estar confortável em minha própria pele era debilitante, as decisões mais simples tomavam uma grande porcentagem emocional e psicológica de mim: me apresentando, indo para a aula de ginástica, usando o banheiro, vestindo roupas que esconderam meu corpo feminino. Eu sabia que precisava da transição, e foi só conversando com outras pessoas trans que recebi a ajuda que precisava para uma transição de sucesso.
Eu sempre soube como agir, mas não era algo que eu pensasse ser possível, pois nunca vi ninguém como eu em nenhum lugar. Não haviam atrizes ou modelos transgêneros de fama – não abertamente – e não haviam personagens transgêneros na TV ou nos filmes.
Quando criança, no final dos anos 90, todos os dias depois da escola assistia desenhos como Cardcaptor Sakura e Sailor Moon . Recentemente descobri que ambas as versões originais da voz japonesa dessas séries apresentavam caracteres trans ou não binários, que foram removidos para o público norte-americano. Na verdade, todas as referências LGBT, personagens ou relacionamentos foram completamente reescritas ou excluídas. Descobri que Zoisite, um supervilão feminino de inteligência rápida e compassivo em Sailor Moon, foi transgênero na série original. Mas na nova versão seu gênero foi alterado porque as redes não queriam uma reação nacional para o que seria visto como um relacionamento “homossexual”. Se ela não tivesse sido reescrita, sua presença em um programa de TV que fazia parte da minha vida diária teria me ajudado tremendamente. Isso me daria algo para me relacionar, teria permitido que eu e outros transexuais se sentissem validados e dignos de serem amados.
Muitas pessoas são expostas apenas a pessoas trans através de estereótipos de mídia, como um homem de vestido. Isso ocorre porque, nos últimos anos, vários personagens trans de Hollywood foram interpretados por homens brancos cisgêneros. A falta de representação autêntica em teatro, cinema e shows torna ainda mais difícil para nós sermos levados a sério e até mesmo tratados igualmente, e a ideia de que o gênero é uma performance e não um identificador valioso de quem e o que somos na sociedade, ameaça nossa segurança.

Uma das maiores falhas em filmes foi o desempenho do ator Jared Leto, interpretando uma prostituta trans, doente e drogada em uma peruca sintética barata no aclamados pela crítica e premiado Dallas Buyers Club . Embora não haja problemas com o trabalho sexual, o risco de AIDS ou o aumento das taxas de abuso de substâncias, é prejudicial se esse é o único tipo de mulher transgênero que aparece na mídia convencional. Torna-se um problema quando ninguém aborda que as mulheres trans muitas vezes têm que recorrer ao trabalho sexual e às drogas por causa do estigma e problemas sociais na vida diária – questões raramente discutidas em filmes ou no teatro.
Quando um roteiro promissor com temas transgêneros é anunciado, como The Danish Girl – A Garota Dinamarquesa – (com base na história verdadeira da primeira mulher transgênero a fazer uma cirurgia de confirmação de gênero), nós recebemos o ator Eddie Redmayne como a estrela. Como fanática pela série Pretty Little Liars desde que eu era pré-adolescente, achei extremamente perturbador e decepcionante que, depois de sete anos no ar, a grande revelação fosse que o vilão (se não quer ler spoiler pule pro parágrafo seguinte) era uma mulher trans e amargurada. Eu acho que todos nós podemos concordar que isso é problemático: não só o ator não foi genuinamente trans, mas os escritores usaram pessoas trans para servir como engano, como um toque de enredo.
Infelizmente, ainda há um longo caminho a percorrer. Mas eu gosto de aprender com aqueles que abriram o caminho para atrizes e modelos como eu.
Caroline “Tula” Cossey, ex-garota Playboy, primeira supermodelo trans e primeira trans a interpretar uma Bond Girl (nome dado às personagens do mundo fictício do agente secreto britânico James Bond que tem relação romântica ou sexual com o agente 007) , é um exemplo notório de alguém que foi despedaçado pela imprensa e público por simplesmente ser transgênero. No início da década de 80 os jornais gastaram inúmeras páginas “expondo” Cossey. Embora estar presa dentro de si mesma fosse doloroso, era ainda mais desconcertante para ela não conseguir entrar em uma sala de elenco, em uma mercearia, ou em um tapete vermelho, sem perguntas generalizadas sobre sua transição e seus órgãos genitais. Um artigo de jornal da época, intitulado “I Am A Woman”, aprofunda sua luta para ser legalmente reconhecida como mulher para poder casar com seu marido. Mas o que poderia ter sido um artigo esclarecedor sobre essa luta torna-se nojento: tratam Cossey como homem gay o tempo todo.
Em um recente artigo do Mirror sobre o hiato de duas décadas na carreira de Cossey, ela conta que cansou-se de tirar fotos lindas e de alta qualidade para revistas como a Vogue, achando que seria vista como uma porta voz da causa trans, mas no final ela era somente uma isca para vendas de revistas. A pinup da Playboy que ela fez em 1996 trazia a manchete “Você dormiria com essa mulher?” Seguido por “Veja dentro e então decida.” Enquanto a capa é grotesca por promover o estigma, o mistério e a decepção de se deparar com uma mulher trans, a motivação de Cossey era admirável: ela usava qualquer plataforma que tivesse para tentar fazer com que fossemos vistos como iguais.

Na matéria Cossey também fala sobre o sucesso recente das atrizes trans, como Jamie Clayton no Sense 8 e Laverne Cox de Orange Is the New Black . O personagem de Laverne Cox, Sophia, embora esteja encarcerada, é um excelente exemplo de lutas trans. Sophia lida com questões realistas que uma mulher trans pode enfrentar, como a falta de acesso aos cuidados médicos e sua luta para retomar um vínculo com o filho após a transição. A série lida de tudo com muita sensibilidade, nas cenas de pré-transição da personagem Sophia, quem fez o papel foi o irmão da atriz, o que foi admirável, pois a identidade e a autoestima de Laverne não foram comprometidas por uma narrativa trans.
Para uma atriz trans como eu, a ideia de reviver sua jornada médica, mental e espiritual é extremamente angustiante. Eu vi de primeira mão os tipos de papéis que estão disponíveis para as atrizes transgêneros. No cinema ou no teatro vejo avisos de que eu terei que estar disposta a interpretar o personagem antes da transição, durante e depois. Embora eu seja grata por ser considerada para o papel – qualquer papel – uma parte de mim morre por dentro. Se eu não posso atuar como um macho na vida real sem ficar angustiada, como posso autenticamente realizar isso para uma câmera? Seria como pedir a alguém que tenha sobrevivido a um acidente horrível para reviver seu trauma.

Já fui rejeitada em um comercial por não ser “100% visivelmente transgênero”, em outras palavras: Eles não queriam alguém tão feminina, eles continuam nos usando como iscas de curiosos para vender seus produtos’’. Isso me confirmou que a empresa queria transmitir uma pessoa transgênero simplesmente para parecer progressista e de mente aberta, não porque quisesse contratar, apoiar ou dar oportunidades as atrizes trans.
É difícil lutar pelos nossos direitos humanos básicos em um mundo onde, na maioria dos países sem Carta de Direitos e Liberdades, as decisões sobre nosso status político, médico, habitacional e de emprego são deixadas para outras pessoas escolherem. Mesmo agora, os políticos fazem escolhas que nos afetam – como nos negar a participação militar – de uma forma tão abrupta e inconsequente como se estivessem escolhendo uma cortina nova para a sala.
A jornada e as ações de pessoas trans lutando pelo respeito humano básico em casa ou na rua não é fácil. Mas as pessoas cisgêneros continuam estando muitas vezes no centro de histórias complexas que não têm nada a ver com sua identidade de gênero. Por que não trans personagens também? Muitas vezes eu vi filmes que se concentram fortemente no processo de transição e não são sobre a complexidade real da vida do personagem trans. As pessoas trans enfrentam muitas lutas além de suas aparências e jornadas médicas. Não precisamos entender como as pessoas transgênero se transpõem, mas porque .
Muitos dos jovens de hoje, inclusive eu, estão sendo empurrados para o YouTube e outros sites de redes sociais para contar histórias precisas e verdadeiras de vidas e dificuldades trans. É verdadeiramente a única plataforma que dá destaque as pessoas, independentemente de quem elas são ou o que elas parecem. Este é um grande passo em termos de visibilidade, conscientização e de deixar que os outros saibam que não estão sozinhos. Mas é preciso chegar um momento em que as vozes trans contem as suas histórias no teatro, na televisão e nos filmes. Devemos lutar para provar que somos humanos, como todos os outros.
por Sydney Violet-Bristow
Esse artigo foi traduzido do inglês, a matéria original foi postada no site da Intermission Magazine em setembro de 2017 e traduzido por Juliano Bonfim. Para acessar o original: Why Aren’t There More Good Roles for Trans Actresses?
Sydney Violet-Bristow
Sydney é canadense e formada em Artes Dramáticas pela Earl Haig Secondary School.
Após receber diversos papéis pequenos e rápidos em produções, começou a buscar papéis principais em campanhas publicitárias e a lutar por mais espaços para atrizes e atores trans em produções. Esteve em cartaz até o dia 01 de outubro com o espetáculo Gray, baseado na vida de Dorian Gray, com o sua companhia teatral, Theatre Inamorata.
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